Sobre listas de melhores do ano e japoneses, como não poderia deixar de ser

Todos os anos ouço diversos álbuns provindos do arquipélago nipônico, dos mais distintos gêneros. Acompanho alguns (ALGUNS?!) grupos e artistas ligados ao pop mainstream daquele país, mas também alimento uma constante curiosidade para o que é lançado por aquelas terras nucleares em outros ramos da música. Afinal, a indústria fonográfica japonesa além de colossal em número de vendas (de mídia física, enquanto em outros países esse mercado vai perecendo) também o é em estilos, e na constante mistura do ocidental e o oriental, o moderno com o tradicional.

Não costumo enumerar aqueles discos que no decorrer do ano considerei dignos de repetições exageradas no player do celular, mas ao ver a listinha postada nesse mesmo blog pelo Yuri, resolvi discorrer um pouco sobre os melhores (na minha opinião, afetada por diversos vícios e cegado pelo amor) lançamentos do ano. Escolhi o Japão como recorte geográfico e cultural por – ora bolas, por ser o país de onde provém a maioria dos álbuns que escutei nesse ano. É verdade que escutei muito mais coisa digna de nota, vinda de países do ocidente, mas um “top” geral me pareceu dispendioso em demasia. Essa é apenas uma amostra do que se produziu (e que ouvi, óbvio) por lá neste ano, não estando por ordem de preferência, apenas sendo jogadas ao vento pela vontade desse que escreve.

Além de puxar o saco dos meus preferidos (dez, pra ficar redondo) ao final indicarei outros dez álbuns, que mesmo por ter ficado com preguiça de escrever sobre a experiência auditiva presenciada de alguma forma chamaram a minha atenção de forma positiva, ou só foram bonzinhos; qual o problema em ser um álbum bonzinho, hein? Singles e coletâneas não contam.

Misaki Iwasa – Request Covers

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Mais um ano, muitos singles do AKB48. Vou ouvindo, vendo os clipes de cada música e as suas apresentações em programas musicais da TV japonesa, enquanto repito para mim mesmo que tenho que parar com essas coisas e assumir uma postura mais séria perante a vida. Mas o que me chama a atenção mais uma vez é o indivíduo, como no ano passado em relação ao álbum solo de piano de Sakiko Matsui. Os vocais em uníssono já se tornaram rotina.

Em relação a essa guria, já havia ouvido e gostado do seu primeiro single (de 2012), também calcado no enka e em tudo que essa estética, de outra era da música popular japonesa, tempos de quimonos chiques e vocais teatrais, acarreta. Talvez o conceito de idols modernas cantando ao estilo das idols de outrora seja o que mais apele para os meus ouvidos, e no caso a execução também não deixa a desejar. São covers de músicas tradicionais da era, e a mocinha canta direitinho, obrigado. Destaque para as versões de Blue Light Yokohama (não consigo ouvir essa música, cantada originalmente por Ayumi Ishida, sem ser transportado para o Japão das últimas décadas do Período Showa, que durou de 1929 até 1989), Ettou Tsubame e Toki No Nagareni Miwo Makasse (clássico de Teresa Teng, cantora nascida em Taiwan mas popular tanto no Japão quanto na China), todas muito respeitosas às suas versões originais.

Momoiro Clover Z – 5th Dimension

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Se é impossível entender o atual pop japonês sem procurar entender a obsessão desenfreada que os idol groups causam em tal sociedade desde épocas imemoriais, também seria difícil entender como esse “gênero” pode se justificar pela música, mas este álbum é uma prova que nem tudo é aparência nessas paragens.  Na realidade tal disco, e o grupo que o carrega como estandarte, se coloca como um ensaio contra o jpop pasteurizado ao qual estamos acostumados. Rebeldia? Talvez, mas sem deixar de ser pop.

Ao início temos a introdução de O Fortuna, da ópera Carmina Burana, anunciando algo verdadeiramente grandioso e ambicioso. E o é, realmente, um grande álbum pop, em extensão, e ambicioso nas suas intenções. Inteligente também é a mistura de gêneros, sem medo de soar pretensioso ou chato em passagens de dubstep ao estilo de Skrillex (e como eu odeio isso, Jesus Cristinho). 5th Dimension é ambicioso e acerta em cheio ao correr contra a maré, e o Momoiro Clover, que já havia surgido com um ótimo álbum em 2011 e vinha crescendo como grupo, em popularidade e maturidade, vai passando pra trás garotas já estabilizadas nessa indústria vital. Palmas aos produtores.

Wakusei Abnormal – Nandemonai Kyoki

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Mini-álbum de estréia desse grupo, formado por uma dupla de jovens mulheres sedentas por sangue, essencialmente uma banda de rock com influências variadas e corajosos toques de experimentalismo. São somente seis faixas, mas que exalam um poderoso potencial, marcado pela utilização do piano em contraste de guitarras distorcidas ao máximo em faixas como a quarta.

O segundo mini-álbum também veio nesse ano, intitulado Anata Sonata, e apresenta mudanças em relação ao primeiro registro. Conta com as primeiras faixas um tanto pop-grudentas-balada, mas são boas músicas, e também tem lá a sua dose de experimental. Me deixa bastante curioso no que poderá vir a seguir, mas só me resta esperar para ouvir.

Rin Toshite Shigure – i’mperfect

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Fui lembrar dessa bandinha pouco antes de decidir fazer essa lista, demostrando o meu desapego com coisas organizadas e planejadas previamente. Já tinha ouvido o disco anterior, Still a Sigure Virgin? de 2010, e lembro de ter gostado na época apesar de logo após esquecer de correr atrás de outras coisas da banda, que faz um… um som legal, rock alternativo meio post-hardcore, meio matemático. Vocais masculinos e femininos. Primeira banda com vocais masculinos desta lista, pois é. Mas a baixista é uma gracinha, e muito competente, tanto no vocal quanto no seu instrumento.

Agressivo quando necessário, o que é a maior parte da sua duração, não implicando na não existência de momentos de calmaria dentre essa chuva de pedras. Mas tenho a impressão que o álbum anterior era mais corajoso, só que para afirmar uma coisa dessas precisaria revisitá-lo, coisa que ainda não fiz. Mesma coisa em relação aos outros discos, cuja audição parece valer a pena.

Perfume – Level3

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Quando o produtor é talentoso, não tem jeito. O que temos aqui é o quarto álbum das meninas do Pefume, trio formado por Yuka Kashino, Ayano Oomoto e Ayaka Nishiwaki, mas quem brilha por baixo de tantas camadas de eletropop é Yasutaka Nakata, “mago” da música eletrônica japonesa e membro do grupo Capsule. Nakata é produtor (além de compositor e, às vezes, letrista) das meninas desde 2003, e a qualidade do seu trabalho transparece de forma fantástica no produto final. Por Deus, sou muito fanboy desse cara.

Os vocais são padrão jpop e a música é daqueles eletropop, quase house, dançantes pra caramba. Não sou de dançar, mas numa balada que tocasse Perfume, quem sabe.  Mesmo as músicas que já haviam sido a-sides dos singles lançados anteriormente não soaram repetitivas (e acredite, ouvi muito esses singles) já que receberam um tratamento diferenciado para as suas versões do álbum. É o Japão ensinado o pessoal a fazer música para dançar a noite toda, mesmo que eu nem levante do sofá enquanto estou ouvindo. E é também a volta a forma dessas meninas, depois de um álbum mais ou menos em 2011 (JPN, que até gostei bastante também, ao ponto de dar 3,5 no Rate Your Music).

tricot – T H E

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Mais um álbum de rock bem longe do convencional, de um grupo também formado quase que só por garotas. A única exceção é o baterista. Juro que não tenho nada contra bandas masculinas, é que 2013 foi pedrada atrás de pedrada.

Não sou o maior fã de math-rock, mas bandas como esta me fazem ter um respeito maior pelo gênero, além da vontade de conhecer cada vez mais. Não há aqui, como era de se esperar, a limitação a apenas um modelo, receitas de músicas de math-rock perfeitas. Instrumentalmente é bastante livre, além da competência óbvia de todos os membros em seus respectivos instrumentos de trabalho (o grupo possui duas guitarras e um baixo, e além da guitarrista/vocalista principal as outras meninas também fazem backing vocals). Pra ouvir do começo ao fim, sem pular nenhuma faixa, acompanhando a bateria com os dedos e batendo a cabeça na parede.

 Kyary Pamyu Pamyu – Nanda Collection

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Outra maravilha pop produzida por Yasutaka Nakata. O segundo álbum de estúdio da cantora, modelo e instrumento das elites para a concretização da nova ordem mundial illuminati também merece os louros do sucesso, abundante desde 2011, quando o clipe de PonPonPon viralizou pelas bandas da internet. A estética extremamente kawaii (Kyary se declara uma porta-voz da cultura, e moda, que se desenvolveu nas ruas da região de Harajuku, na capital japonesa) e clipes bizarros, que dão eco ao senso comum, para o qual o Japão se trata apenas da terra do WTF, ao mesmo tempo que espantou muitos também atraiu outros tantos, por motivos diversos.

Estranhezas à parte, musicalmente é uma produção e tanto. Já puxei o saco do Nakata o suficiente e quando faço isso parece que a mão de Kyary em suas músicas é inexistente, o que não é verdade. Ao cantar temas tão inocentes quanto doces e sorvetes de morango, e até refletindo sobre a chegada da vida adulta em alguns momentos, Kyary lembra de certa forma a France Gall do meio da década de 1960. Veredito: muito melhor que o álbum do Justin Timberlake, rs.

 BiS Kaidan – BiS Kaidan

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Colaboração entre o grupo idol BiS, já bastante contestador ao sistema tradicional da indústria idol por si só, e a banda noise Hijokaidan, veteranos no assunto. A mistura dá muito certo, resultando em versões de músicas do grupo sendo executadas em conjunto com a orquestra harsh noise, especialidade nipônica como os sushis e versões hentai de animes de sucesso.

O destaque aqui fica para a versão de uma música de outra ferrenha anti-idol, talvez a inauguradora desta “luta”: Suki Suki Daisuki, de Jun Togawa. Tia Jun, do alto da sua longa carreira cheia de acertos e experimentos, além da contante crítica a vários aspectos da sociedade japonesa, deve ter sentindo um tremendo orgulho dessa molecada ao ouvir essa faixa. Um registro crú, merecedor de estar nesta lista (como se fosse grande coisa) cheia de idols pasteurizadas.

Etsuko Yakushimaru – Radio Onsen Eutopia

三角箱0306Surpresinha que só fui ouvir nas últimas semanas. Já conhecia a cantora e a primeira faixa (Nornir), que foi tema de abertura de um dos melhores animes dos últimos anos: Mawaru Penguindrum. Nem de longe é o que se costuma conceber como música de anime, geralmente domínio hora do jpop convencional ou de bandas de rock normalíssimas, em desenhos de ação shonen.

Consiste de uma apresentação que foi difundida via rádio (da NHK) no dia de natal, do ano passado, e conta entre os seus participantes, além da já citada cantora, nomes de calibre na música japonesa. Sim, Otomo Yoshihide, estou falando de você.A música possuí uma aura poderosa, no maior sentido benjaminiano, mas na necessidade de tagear diria que é um jpop (um tanto puxado pro rock também, em algumas passagens) um tanto – vou utilizar um termo que pode parecer pretensioso mas esse post inteiro está mais ou menos assim –  artístico, num sentido de arte bem livre, enfim. Fofo, mas com alma.

385 – Ningen

4688805Agora a coisa fica difícil. Complicado é lidar com altas expectativas. Este álbum, que se prova um bom álbum depois de algumas audições, teve lá o seu gostinho de decepção ao ser ouvido pela primeira vez. Expectativa e realidade. O EP (lá do distante ano de 2010) prometeu alto, e aqui vemos várias coisas diferentes. Nada ruim, só conceitos diferentes mesmo. Existiu uma banda que também fazia uma competente fusão de jazz e punk, hardcore e noise, chamada Midori. Mas ela morreu em 2010, com a saída da vocalista/guitarrista Mariko Goto, que agora está numa aventura com bastante potencial no jpop. Há muita comparação entre essa e aquela, já que ambas fazem um som parecido (Midori sendo mais centrado no piano, ao passo que quase não ouvimos pianos no 385, salvo em  algumas passagens). Besteira comparar coisas tão distintas; e esse álbum se sustenta por si só na minha opinião, não precisando referenciar a falecida banda.

Tudo foi bão em 2013, outros 10 álbum batutas em seus respectivos campos:

Boris – Präparat

CAPSULE – CAPS LOCK

Ichiko Aoba – 0

Manierisme – フローリア

Melt-Banana – Fetch

Seiko Oomori – Mahou Ga Tsukaenai Nara Shinitai

Seiko Oomori and Lai Lai Lai Team – Poi Dol

Soutaiseiriron – Town Age

Syzygys – Otona

Tokyo Girls’ Style – Yakusoku

Os melhores de 2013 segundo… eu.

Nesse ano de 2013 eu me prometi que ouviria muitos discos do ano, que ao fazer minha listinha de melhores do ano eu o faria com a autoridade de quem ouviu uma quase totalidade dos álbuns presentes nas listas de melhores do ano mundo afora e também muitos vários fora de listas. Conforme o ano foi chegando ao fim, isso foi se mostrando cada vez mais complicado.

Desde o início do ano eu acompanhava o Top 100 de 2013 pelo site Rate Your Music, além de reviews de revistas mensais gringas, para saber o que de bom estava sendo lançado por aí. Amigos me sugeriam coisas pela Rdio e a própria Rdio me avisava quando um artista de quem gosto lançava alguma coisa nova. E muita coisa foi ouvida. 238 discos, pra ser exato. Excetuando singles e DVDs/Blu-rays. O que significa isso? Infelizmente significa que nesse ano optei por quantidade ao invés de qualidade. Ouvi muitas coisas boas, mas as ouvi poucas vezes. Logo a ideia de ‘autoridade’ ao fazer uma lista dessas foi escorrendo ladeira abaixo. Como vou colocar um disco na lista tendo-o escutado apenas uma vez? Mas e se eu escutá-lo outra vez posso perder a oportunidade de ouvir um disco talvez até melhor que este. A escolha, na grande maioria das vezes, foi esta segunda – o que me faz lembrar aquela piadinha do Seinfeld: as mulheres zapeiam pela a TV pra saber o que está passando, os homens zapeiam pela TV para saber o que mais está passando.

E isso, claro, sem contar com os discos de todos os outros anos desde o nascimento da indústria fonográfica. Isso tudo fez com que, na chegada do mês de dezembro, eu tivesse muito trabalho atrasado a fazer. A verdade é que um ano é muito pouco para digerir a produção de um ano.

O que eu pude fazer e pareceu menos desonesto foi organizar a lista em patamares conforme minhas notas aos discos no site Rate Your Music. É menos excitante do que ver os álbuns numerados um a um até 25 ou 50, mas como você pôde ler, isso não foi possível. A lista a seguir não contempla coletâneas nem de vários e nem de um artista. Espero também que nenhum single tenha escapado e entrado aí na seleção. Qualquer coisa vocês, leitores atentos, me avisam. Os links da lista levam aos respectivos álbuns e artistas no RYM.

E que venha um 2014 em que eu devo optar pela qualidade ao invés da quantidade!

4.5 – Soberbos

Bill Callahan – Dream River

Connan Mockasin – Caramel

Elton John – The Diving Board

Emicida – O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui

Enforcer – Death by Fire

From the Vastland – Kamarikan

Jason Isbell – Southeastern

Marcelo Camelo – Ao vivo no Theatro São Pedro

Nick Cave and The Bad Seeds – Push the Sky Away

Orphaned Land – All Is One

Pearl Jam – Lightning Bolt

Persefone – Spiritual Migration

Placebo – Loud Like Love

Rotting Christ – Kata Ton Daimona Eaytoy

Scale the Summit – The Migration

Soilwork – The Living Infinite

Witherscape – The Inheritance

4.0 – Muito Bons

Alela Diane – About Farewell

Alice in Chains – The Devil Put Dinosaurs Here

Altar of Plagues – Teethed Glory and Injury

Anathema – Universal

Arctic Monkeys – AM

Atoms for Peace – Amok

Audrey Horne – Youngblood

Billy Bragg – Tooth & Nail

Blood Red Throne – Blood Red Throne

Carcass – Surgical Steel

Charles Bradley – Victim of Love

Chvrches – The Bones of What You Believe

Coliseum – Sister Faith

Cult of Luna – Vertikal II

Daft Punk – Random Access Memories

Dark Tranquillity – Construct

Darkthrone – The Underground Resistance

Dream Theater – Dream Theater

Eluvium – Nightmare Ending

Exhumed – Necrocracy

Fuck Buttons – Slow Focus

Ghost – Infestissumam

Goldfrapp – Tales of Us

Gorguts – Colored Sands

Gustavo Santaolalla – The Last of Us

Hamferð – Evst

Immolation – Kingdom of Conspiracy

Indochine – Black City Parade

Inquisition – Obscure Verses for the Multiverse

Inter Arma – Sky Burial

Best Coast – Fade Away

Gary Numan – Splinter (Songs From a Broken Mind)

J. Karjalainen – Et ole yksin

Jake Bugg – Shangri La

James Holden – The Inheritors

Jess and the Ancient Ones – Astral Sabbat

Jesu – Every Day I Get Closer to the Light From Which I Came

Jex Thoth – Blood Moon Rise

John Grant – Pale Green Ghosts

Johnny Marr – The Messenger

Julia Holter – Loud City Song

Kanye West – Yeezus

Killswitch Engage – Disarm the Descent

Laura Marling – Once I Was an Eagle

Leprous – Coal

M.I.A. – Matangi

Makthaverskan – Makthaverskan II

Mark Kozelek & Jimmy LaValle – Perils From the Sea

Mavis Staples – One True Vine

Moby – Innocents

Neko Case – The Worse Things Get, the Harder I Fight, the Harder I Fight, the More I Love You

Nine Inch Nails – Hesitation Marks

Omnium Gatherum – Beyond

Paysage d’Hiver – Das Tor

Pet Shop Boys – Electric

Phaseone – If I Tell U

Phosphorescent – Muchacho

Powerwolf – Preachers of the Night

Queens of the Stone Age – …Like Clockwork

Revocation – Revocation

Richard Thompson – Electric

Riverside – Shrine of New Generation Slaves

Satan – Life Sentence

Scorpion Child – Scorpion Child

Spock’s Beard – Brief Nocturnes and Dreamless Sleep

Steven Wilson – The Raven That Refused to Sing (And Other Stories)

Stonewall Noise Orchestra – Salvation

Summoning – Old Mornings Dawn

Suuns – Images du futur

The Flaming Lips – The Terror

The Godfathers – Once Upon a Crime

The Lost Patrol – Driven

The National – Trouble Will Find Me

The Strokes – Comedown Machine

Ulver With Tromsø Chamber Orchestra – Messe I.X–VI.X

Vàli – Skogslandskap

Yo La Tengo – Fade

3.5 – Bons

A Pale Horse Named Death – Lay My Soul to Waste

Amorphis – Circle

Ana Carolina – #AC

Ancient VVisdom – Deathlike

Anciients – Heart of Oak

Angizia – Des Winters finsterer Gesell

Antichrist Hooligans – We Will Piss on Your Grave

Autopsy – The Headless Ritual

Avatarium – Avatarium

Backstreet Boys – In a World Like This

Black Sabbath – 13

Boards of Canada – Tomorrow’s Harvest

Bring Me the Horizon – Sempiternal

Chelsea Wolfe – Pain Is Beauty

Csejthe – Réminiscence

Cult of Luna – Vertikal

David Bowie – The Next Day

Death Angel – The Dream Calls for Blood

Depeche Mode – Delta Machine

Devendra Banhart – Mala

Ed Motta – AOR

Eminem – The Marshall Mathers LP 2

Enshine – Origin

F.T.C. – Anti-Human

Facada – Nadir

Fleshgod Apocalypse – Labyrinth

Håkan Hellström – Det kommer aldrig va över för mig

Haken – The Mountain

Hell – Curse & Chapter

Herder – Doomed

Ihsahn – Das Seelenbrechen

In Solitude – Sister

James Blake – Overgrown

James Blunt – Moon Landing

Janelle Monáe – The Electric Lady

Jay Z – Magna Carta… Holy Grail

Joe Satriani – Unstoppable Momentum

Jon Hopkins – Immunity

Justin Timberlake – The 20/20 Experience

Kadavar – Abra Kadavar

Karnivool – Asymmetry

Katy Perry – Prism

Kurt Vile – Wakin on a Pretty Daze

Laura Mvula – Sing to the Moon

Manic Street Preachers – Rewind the Film

Mark Kozelek – Like Rats

Mark Kozelek & Desertshore – Mark Kozelek & Desertshore

Megadeth – Super Collider

Mikal Cronin – MCII

Motörhead – Aftershock

My Bloody Valentine – m b v

Nocow – Solus

Noctum – Final Sacrifice

Northern Portrait – Pretty Decent Swimmers

Paul McCartney – New

Primal Scream – More Light

Quasi – Mole City

Rodrigo Amarante – Cavalo

Run the Jewels – Run the Jewels

Satyricon – Satyricon

Savages – Silence Yourself

Sepultura – The Mediator Between the Head and Hands Must Be the Heart

Sigur Rós – Kveikur

Snoop Lion – Reincarnated

Soulfly – Savages

Stellar Master Elite – Destructive Interference Generator

Stratovarius – Nemesis

Streetlight Manifesto – The Hands That Thieve

Suffocation – Pinnacle of Bedlam

Tarja – Colours in the Dark

TesseracT – Altered State

The Civil Wars – The Civil Wars

The Drones – I See Seaweed

The Reflektors – Reflektor

The Wayne Shorter Quartet – Without a Net

The World Is a Beautiful Place & I Am No Longer Afraid to Die – Whenever, If Ever

Ulcerate – Vermis

Tim Hecker – Virgins

Ulver – The Norwegian National Opera

Unkle Bob – Letters EP

Vampire Weekend – Modern Vampires of the City

Voices – From the Human Forest Create a Fugue of Imaginary Rain

Volcano Choir – Repave

Vreid – Welcome Farewell

White Denim – Corsicana Lemonade

Zebra Katz – MMXII

مر سليمان [Omar Souleyman] – Wenu Wenu

3.0 – Medíocres

Amon Amarth – Deceiver of the Gods

Arcade Fire – Reflektor

Arnaldo Antunes – Disco

Avenged Sevenfold – Hail to the King

Avril Lavigne – Avril Lavigne

Belo – Tudo Novo

Ben Lukas Boysen – Gravity

Burzum – Sôl austan, Mâni vestan

Colin Stetson – New History Warfare Vol. 3: To See More Light

Courtney Barnett – The Double EP: A Sea of Split Peas

DARKSIDE – Psychic

Dead Can Dance – In Concert

Deicide – In the Minds of Evil

Earl Sweatshirt – Doris

Esmerine – Dalmak

Fall Out Boy – Save Rock and Roll

Franz Ferdinand – Right Thoughts, Right Words, Right Action

Gambles – Far From Your Arms

Ghost – If You Have Ghost

Hatebreed – The Divinity of Purpose

HIM – Tears on Tape

Holy Grail – Ride the Void

Humberto Gessinger – Insular

Justin Timberlake – The 20/20 Experience: 2 of 2

Kalmah – Seventh Swamphony

Korn – The Paradigm Shift

Kvelertak – Meir

Lord Dying – Summon the Faithless

Los Campesinos! – No Blues

Mac DeMarco – Rdio Sessions

Marcelo D2 – Nada Pode Me Parar

Marcelo Jeneci – De graça

MGMT – MGMT

Nails – Abandon All Life

Negură Bunget – Gînd a-prins

Night Verses – Lift Your Existence

October Falls – The Plague of a Coming Age

Pathology – Lords of Rephaim

The Meads of Asphodel – Sonderkommando

Twiztid – A New Nightmare

Tyler, the Creator – Wolf

Uncle Acid – Mind Control

Voivod – Target Earth

Wardruna – Runaljod – Yggdrasil

Windhand – Soma

2.5 – Ruins

Celeste – Animale(s)

Lady Gaga – ARTPOP

Danny Brown – Old

King Krule – 6 Feet Beneath the Moon

Deafheaven – Sunbather

Brazos – Saltwater

Beatallica – Abbey Load

The Kniφe – Shaking the Habitual

Diamond Dawn – Overdrive

Tuuttimörkö – On totta

2.0 – Muito Ruins

Juan Cirerol – Cachanilla y flor de azar

Uma hipótese de Blue (Joni Mitchell, 1971)

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No filme The Kids Are All Right (de 2010) uma das personagens fala à outra que Blue de Joni Mitchell foi o álbum com o qual ela chorou durante boa parte do colegial. Gosto de acreditar que cada um tem o(s) seu(s) álbum(ns) que cumpre(m) essa função. Blue é um dos meus também.

Por que Blue? Este álbum de Joni Mitchell apresenta os dois lados de um disco amigo (no caso do vinil, melhor ainda representado): o lado quentinho que faz você se sentir aconchegado, em casa, contente, quase curado de seu mal; e o lado gelado de partir o coração que entra em consonância com sua dor. Neste caso, os lados se organizam nessa ordem mesmo, na maior parte.

Costumo prestar atenção na primeira e última frases de bons álbuns, e este aqui começa com “I am on a lonely road and I am travelling / Looking for something, what can it be?”. A estrada é solitária, sem dúvida, e a estamos a trilhar. O que se procura? A resposta aqui mesmo se esboça em ‘All I Want’: procura-se alguém para amar num amor que torne os dois pessoas melhores, mais virtuosas (algo como a amizade em Aristóteles); alguém com quem se possa conversar e agir naturalmente.

Na faixa seguinte esse amor parece ter sido encontrado. Esse amor parece ser verdadeiramente intenso e satisfatório. Também um amor relativamente lúcido, que ‘não precisa ser oficializado na prefeitura’. Entretanto surge o primeiro – e grande – problema no caminho: é um amor muito dependente, como quase sempre o é (se assim quisermos chamar ‘amor’). Quando a levada no piano torna-se um pouco dissonante por alguns momentos depois dos refrães, queixa-se a cantora de que quando ele não está por perto a cama e a panela tornam-se grandes demais. Mas pensando bem, a melodia do refrão (em que Joni garante que não precisam de um pedaço de papel da prefeitura para os manter na linha) é também um tanto dissonante, há algo de ­off-key­ nesse trecho que causa suspeita em relação a essa colocação.

‘Little Green’ é até aqui a canção mais melancólica, mas ainda assim bastante doce – e é justamente nesses dois pontos do espectro que trabalha a letra também: “there will be icicles and birthday clothes / and sometimes there will be sorrow”, canta o final do refrão. Uma possibilidade numa narrativa que podemos traçar em Blue (mais especificamente na primeira metade dele) é que tal amor teve fruto na pequena Green, mas também há o fim do relacionamento que só não é mais traumático em um primeiro momento por causa da filha que permanece com a mãe, tapando o buraco que o pai, agora na Califórnia, deixou quando partiu. Assinam-se os papéis do divórcio e há certo rancor.

Voltando ao tom mais soturno das faixas anteriores surge ‘Carey’, a música mais ‘pra cima’ do disco. Uma delícia de canção. Nessa história que estamos a traçar, poderíamos colocá-la como um flashback de um dos primeiros amores ou talvez como um novo – surpreendentemente – romance. Há uma lucidez dessa personagem do disco de, por entrelinhas, saber que o adeus é inevitável mas que deve-se, por ora, aproveitar o momento. Nesse ponto lembra-me de ‘Hey, That’s No Way to Say Goodbye’ do também canadense Leonard Cohen (que surgirá mais adiante por aqui): “let’s not talk of love or chains / and things we can’t untie”. ‘Carey’, contudo, é muito menos amarga em suas colocações. Ela soa como nossos mais queridos momentos.

A faixa-título sempre me pareceu o momento mais fraco da primeira metade do disco. Não por seu demérito, mais por mérito demais das canções que lhe antecederam.  ‘Blue’ é uma jornada contemplatória acompanhada por um piano. Talvez até uma meta-canção. “Blue songs are like tattoos” parece-me uma maneira mais forte de dizer o que Elton John canta em “Sad Songs (Say So Much)”.  É talvez um aviso para o que presenciaremos – não, (re)viveremos! – no final deste disco. Somos “an empty space to fill in”. As canções tristes são de fato as que ficam marcadas mais profundamente em nosso corpo, como tatuagens.

“Blue, here’s a shell for you

Inside you’ll hear a sigh

A foggy lullaby

There is your song from me”

A palavra ‘shell’ em inglês tem um duplo significado: ‘concha’ e ‘casca’. Nesse trecho que encerra ‘Blue’ (a canção) e o primeiro lado de Blue (o disco), temos a primeira menção à casca, ao casulo, à crisálida. A outra menção será justamente na canção que encerrará o segundo lado e o disco inteiro. Dentro dessa concha você não ouvirá as ondas do mar, você ouvirá um suspiro e uma estranha cantiga. Dentro dessa casca, desse casulo, ainda assim você ouvirá (seus) suspiros. E as canções seguintes são para, fora dessa narrativa do disco, quebrar ou reforçar a casca que nos separa de fora.

O segundo lado começa, surpreendentemente, de forma soturna. Joni vai à ‘California’, a Califórnia para onde foi o primeiro amor dessa estória quando o amor não o era mais, aparentemente. Não há mais rancor, contudo. É como uma continuação de ‘Carey’ e, assim como esta, levada pelo violão e não pelo piano. Leve, apesar de procurar-se abrir ao mundo de fora onde a guerra explode e as pessoas não dão uma chance à paz. ‘This Flight Tonight’ nos leva então, talvez, à Califórnia com a personagem e a estória.  No momento a mim menos memorável dessa jornada sonora, a personagem percebe que talvez esteja cometendo um erro embarcando nesse voo – mas agora é sem volta, e o que temos a seguir é uma forte turbulência.

‘River’ inicia o tríptico de verdadeiros tearjerkers (no melhor sentido) que termina Blue. O piano volta à cena e com ele traz o desejo que perpassa a canção de simplesmente desassociar-se, de sumir quando as coisas dão errado ou quando simplesmente coisas que deram errado – ou um pouco certas demais, mas acabaram – tornam-se presentes outra vez. Nesse ponto a personagem da nossa estória já não voltará aos ‘anos dourados’, estando muito mais próximo dos ‘anos prateados’ dos seus (futuros) cabelos brancos. Admite ser uma pessoa difícil, triste e egoísta. Tarde demais para mudar seu jeito de ser, talvez. E nessa tristeza já presente aprofunda-se ainda mais na melancolia e nas lembranças. A quem interessar, sugiro conferir a interpretação impecável e engrandecedora de Angus Stone dessa canção.

Desconfio de quem não se emociona com ‘A Case of You’. Reza a lenda de que Joni compôs a canção relembrando de um breve romance que teve com Leonard Cohen (não disse que ele apareceria outra vez?), mas eu particularmente prefiro desassociá-la de sua autora. Com essa e com a próxima faixa, francamente, já tornei-me um de forma indissociável com os anos e incontáveis jornadas nos sulcos do vinil e na superfície refletora do CD. ‘A Case of You’ há de tornar-se a canção de cada um que a ouvir, caso a ouça desde um momento em que se está aberto a esse tipo de experiência na vida mesmo. Nesse ponto da estória a estória pouco interessa, na verdade, e torna-se a nossa história pregressa.

Apesar das diferenças, a trajetória de cada um na maioria das vezes conta com esse tipo de experiências que são justamente as que tornam Blue tão especial pela consonância afetiva (isso e, claro, todo o resto). A paisagem de ‘A Case of You’ é muito mais ‘bitter’ que ‘sweet’, e se ela pode beber ‘uma caixa de você’ e continuar de pé é unicamente por resistência adquirida.

Difícil é continuar de pé com ‘The Last Time I Saw Richard’, que derruba quem não foi derrubado pela anterior.

“The last time I saw Richard was Detroit in ’68
And he told me all romantics meet the same fate someday
 
Cynical and drunk and boring someone in some dark café”

 

Eu poderia tornar o que resta desse texto uma confissão extremamente pessoal e talvez um pouco desnecessária, e é justamente o que farei. Aos dezesseis anos, ao me apaixonar horrivelmente pela primeira vez, o ‘meu Richard’ também falou-me que esse negócio de ser romântico – como eu era, no sentido literário mesmo – terminaria de maneira muito ruim pra mim. Obviamente o meu Richard não pôde retornar todo esse sentimento de um rapaz de 16 para outro. Dezesseis anos quando, citando ‘When We Were Young’ do Whipping Boy, “the first time that you loved / you had all your life to give”. Bebi de fato até o ultimo momento antes de ser expulso do bar e não o vi – ‘meu Richard’ – por muitos anos, terminando tudo de uma forma horrenda pra mim e rendendo muitas audições de Blue.

Eventualmente e gradativamente, já não tendo exatamente toda a vida pra dar, fui tornando-me Richard também, até um ponto. Fui entendendo que todo juramento de amor eram ‘pretty lies’. Há ainda hoje quem me diga que ‘o amor é doce’, mas ainda não o pude ver dessa forma.

E era nesse último verso que eu via – e ainda vejo – o ‘meu Richard’ – e muitos outros por quem me apaixonei depois – num futuro um tanto distante (dos 16), casado com uma mulher, grisalho, bebendo na varanda. Uma cena cortada de As Pontes de Madison, naquele mesmo teor. Naquele universo infelizmente não alternativo em que a pessoa amada não nos escolheu e sim a outro/outra que, aos dezesseis, quase sempre vai ser alguém que não o amava de uma forma tão intensa quanto nós o faríamos. E ainda que me sinta um tanto Richard, hoje me vejo nesse bar, afogando as mágoas, amargo. Sou os dois lados da moeda. O Richard foi possivelmente também um romântico que já passou por esse momento.

E a segunda vez, como citei, em que a ‘casca’ (‘shell’) é citada é no aconchego da crisálida (“only a dark cocoon before I get my gorgeous wings and fly away”) que precede, de certa forma, a catarse que são essas últimas canções. A personagem da estória espera, eu também espero e você também talvez espere, ou esperava quando você mais ouvia Blue, que todo esse tempo ruim fosse só chuva de verão.

Alucinação (Belchior, 1976)

Alucinação

Alucinação de Belchior é, como muitos dos meus discos favoritos, um disco conceitual sobre a vida. Não qualquer vida, mas a vida de “um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes, e vindo do interior”. Em outras palavras, é um disco sobre uma parcela muito, mas muito expressiva dos brasileiros. É um trabalho que, a meu ver, é uma ausência sentida nas listas de melhores discos brasileiros junto a Construção, Acabou Chorare, Clube da Esquina, Secos e Molhados, A Tábua da Esmeralda e por aí vai. Alucinação deve muito pouco a estes álbuns, mas não estou aqui pra falar de mérito, de melhor. Isso é com cada um.

Quero falar sobre a poesia constante de Alucinação, quero falar sobre como foi descobrir nesse disco um Belchior que eu desconhecia: a figura de um Bob Dylan brasileiro, poder-se-ia dizer. Um sábio poeta cuja sabedoria vem não apenas de conversar com as pessoas como também dos discos (como ele canta logo na primeira faixa). E que primeira faixa! Falo de ‘Apenas um Rapaz Latino-Americano’. Seu arranjo com backing vocals femininos é levemente desagradável, mas não chega ainda a cair na breguice total que assolou seu disco seguinte (e discos de gente lá de fora como I’m Your Man do Leonard Cohen) – ainda bem. A forma com que Belchior encaixa muitas palavras em pouco espaço na música é algo que eu só tinha ouvido previamente numa sátira dos Baiano e Novos Caetanos e em outra sátira dos Mamonas Assassinas que agora enfim descubro de onde vem (assim como quando comecei a ouvir Raça Negra descobri de onde vinha aquela voz em ‘Lá Vem o Alemão’). Há de fato muito a ser dito numa canção de quatro e poucos minutos.

Existem duas presenças (ou obsessões) musicais nas letras desse disco. A primeira é Caetano. Na canção de abertura ele cita o “antigo compositor baiano” que “dizia que tudo é divino, tudo é maravilhoso”. Mas Belchior, com a sabedoria das pessoas e dos discos e também com a responsabilidade que raros tomam, sabe que a vida não é isso, “a vida é muito pior” do que os “horrores que eu lhe digo”. Em ‘Fotografia 3×4’ dá nome aos bois: “Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do Norte e vai viver na rua”. E não lhe peçam para cantar algo correto, branco, suave. Pelo menos por alguns minutos. E não atirem nele. Ele é apenas o cantor – ou assim diz. Ele é também o compositor. O cantor-compositor tem um tanto mais de responsabilidade. Ou não (porque se ele pode lembrar o Caetano a gente também pode, oras). Ele é o veículo de sabedoria, de poesia.

E é aí que vem a segunda presença/obsessão: a do já previamente citado Bob Dylan. Não que Dylan seja a única pessoa que estivesse fazendo isso na sua época, mas foi o que o fez com mais gente ouvindo na época e o nome mais conhecido para comparação hoje. Além de uma citação direta em ‘Velha Roupa Colorida’ a ‘Like a Rolling Stone’, perpassa o álbum inteiro essa intenção de cantar ‘a dura realidade’. Dylan o faz a seu modo, Belchior canta a dura realidade justamente do rapaz latino-americano, nordestino. Pelo menos em alguns momentos. Em outros, como Dylan, o foco é muito mais amplo, universal. ‘Velha Roupa Colorida’, por exemplo, é praticamente uma regravação com outra letra e outra melodia de ‘The Times They Are A-Changin’’.  Belchior canta anos depois em um país e uma situação política diferente (mas não menos preocupante), e canta esses tempos de mudança de uma forma toda brasileira, misturada com a sabedoria e os dissabores do mundo: “Como Poe, poeta louco americano / Eu pergunto ao passarinho / Blackbird, assum preto, o que se faz?”.

Na terceira faixa, ‘Como Nossos Pais’, Belchior começa cantando que não quer falar sobre o que ele aprendeu nos discos – mas, convenhamos, ele já o fez. Tudo que ele nos cantou e cantará ao longo desse disco é o que aprendeu nos discos (e na literatura, e nos filmes, mas principalmente na pele). Faz-me citar aqui novamente o Dylan que cantou  “In the dime stores and bus stations, people talk of situations / Red books, repeat quotations / Draw conclusions on the wall”. Alucinação é a pichação de Belchior, a síntese do que aprendeu com a Arte e com a Vida. ‘Como Nossos Pais’ também esboça uma resposta a quem porventura o perguntar se a Arte salva, dizendo saber que “qualquer canto é menor que a vida de qualquer pessoa”.

Mas ‘Como Nossos Pais’ não é uma elucubração, ao meu ouvir, é um puxão na orelha. É uma canção, outra vez, brutalmente honesta. Eu não vivi essa época, não pertenço a essa geração e hoje eu acho que a juventude não pode dizer que vive como seus pais. O mundo mudou demais ao longo das últimas poucas gerações. Não sei tampouco de que forma Belchior fala que essa sua geração vive como seus pais. Pela segunda vez consecutiva (mas não ultima, e eis aqui outra obsessão) ele pede para que abramos mão do passado, para não “waste your time away searching for those wasted years” (porque se o Belchior pode citar Poe, eu posso citar Iron Maiden também – é a sabedoria dos discos!). Outra canção que me vem é ‘Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto’ da Legião Urbana, especificamente quando Renato canta que “até bem pouco tempo atrás poderíamos mudar o mundo / quem roubou nossa coragem?”. Sem respostas, coloco essas canções lado a lado e coço a cabeça. De que forma essa geração mudou o mundo e de que forma a minha (nossa?) está mudando ou vai (porventura) mudar? Coisas que vemos e vimos recentemente no jornal (mas “quem lê tanta notícia?”) não indicam mudanças bastante significativas no mundo? Conheci essa canção por Elis, que a regravou e também a anterior, ‘Velha Roupa Colorida’ – respectivamente a primeira e segunda faixa do seu celebrado disco Falso Brilhante que, se vocês me perguntarem, deveria continuar o que começou nas duas primeiras faixas e fazer um cover completo de Alucinação e deixado ‘Fascinação’ pra outra vez. Mas, outra vez, não estou aqui para falar de melhor ou pior.

Em ‘Sujeito de Sorte’, Belchior aponta pra fé (“Deus é brasileiro e anda do meu lado”) e rema (mas rema para a anarquia Como O Diabo Gosta), para fazer eco aqui à banda que me abriu os olhos ao Belchior: os Los Hermanos, que regravou (bundamolemente) minha canção predileta desse disco: ‘A Palo Seco’.

Sobre essa não falo, peço apenas que ouçam assim como peço para que ouçam o disco (de novo, caso não o tenham fresco na cabeça). Apenas dela cito: “E eu quero é que este canto torto feito faca corte a carne de vocês”. E é isso que ele faz aqui.

E é isso que eu espero dos grandes artistas.

Descobrindo Otomo Yoshihide enquanto procuro músicas de animes da década de 70 no soulseek

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Estava, há pouco mais de dois meses, ouvindo o mais recente trabalho de Otomo Yoshihide. Trata-se de uma trilha sonora de um dorama matinal (intitulada Amachan) vinculado na NHK, a rede de televisão estatal japonesa. Não é nada sensacional, mas mesmo sendo uma produção encomendada carrega um pouco da sua marca, doses ousadas de experimentalismos num disco um tanto convencional. Ou nem tanto, na real, é só uma OST de qualidade normal para um seriado do tipo. Não tive a oportunidade de ver como a música dialoga com a série em questão, mas deve combinar.

Corta para algum lugar do passado.

Procurando músicas de abertura de alguns animes clássicos. Foi assim a primeira vez que entrei em contato com o tal Yoshihide, interpretando temas famosos de autoria de Takeo Yamashita. Yamashita foi muito prolífico, em se tratando de suas composições, na década de 1960 e 70, e é lembrado principalmente pelas trilhas icônicas da série Giant Robot e o anime Lupin III. O tratamento dado por Otomo em tais temas me impressionou, e quando fui procurar outras coisas do mesmo artista dei de cara com The Night Before the Death of the Sampling Virus. Não estava preparado para isso, ainda. Não naquele momento de minha adolescência.

Um pouco de história.

Otomo, que posso chamar de tio já que tem praticamente a idade do meu pai, estudou etnomusicologia na Universidade Meiji, com ênfase na música pop japonesa do período da Segunda Grande Guerra e o desenvolvimento de instrumentos musicais durante a revolução cultural, na China. Essa influência da academia ele levou para as suas músicas, brincando com samples de instrumentos do período e músicas de propaganda, assim como o conceito da ópera revolucionária maoista em trabalhos do Ground Zero, grupo com o qual gravou alguns discos produzidos pela gravadora de John Zorn, a Tzadik. Também parece que compôs as suas primeiras linhas de música pós-tudo quando ainda nem tinha nascido, e quando sua mãe deu a luz ele já tinha uns vinte projetos em andamento. Se tá na Wikipédia é verdade.

No Ground Zero, seu playground de colagens musicais naquele momento dos anos 90, ele já havia brincado (e digo isso pois o cara, e a turma, faz tudo com uma naturalidade assustadora) com um tema de tokusatsu da década de 60; Ultra Q, nada mais nada menos que o primeiro da família Ultra. Faz parte de um álbum ótimo do grupo (e também o último), o Plays Standards. Se Otomo Yoshihide vai tocar “standards” – que vão da música citada, uma versão de Those Were The Days (também conhecida como “aquela música do Silvio Santos”), brincadeiras (fantásticas!) com Folhas Secas, de Nelson Cavaquinho, marchinhas militares e muita maluquice – nunca será de forma convencional. Gosto de pensar que essa versão o levou a ter a ideia de fazer um disco só com versões de músicas de animes/tokusatsus. Na verdade ele devia já ter tudo planejado de antemão.

Pararei de puxar o saco metafórico do japonês.

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Otomo Yoshihide Plays the Music of Takeo Yamashita também não é nada de sensacional. É mais um de uma grande lista de álbuns de que guardo uma memória sentimental que transcende a música. Um disco assim assado, calcado na exploração da memória afetiva de uma geração de japoneses que cresceram cantando essas músicas junto da televisão não deveria me deixar meio sem graça, mas deixa. Gravado em conjunto com o seu, à época recém-formado, New Jazz Quintet em algumas faixas, focadas num jazz um tanto convencional, enquanto em outras seguia por caminhos musicais mais tortuosos, sampleando quando preciso. A versão de Giant Robot, por exemplo, sempre me causou uma boa impressão pela sua força, violência, e o bom uso dos samples. E é inacreditável a delicadeza da versão do tema de Super Jetter, muito mais lenta que a original, e não é a única em que ele opta por uma estrada calma, o vocal feminino, o xilofone. Já Lupin, que já acho na sua trilha original um trabalho de mestre do Yamashita, não tem os seus temas tão modificados, salvo uma coisa ou outra.

Difícil explicar o meu gosto por esse álbum, acredito que seja mais pela descoberta que me proporcionou que pela qualidade em si. Já estou me contradizendo. É sim por si só bom, mas o Otomo já fez muito melhor, tanto no Ground Zero como em variados projetos a perder de vista. Workaholic. O cara merece ter a sua (enorme) discografia explorada com um tiquinho de tesão. Tem algumas tranqueiras também, experimentos que não deram tão certo ou em que não houve a intenção de criar algo tão fenomenal. O importante é experimentar.

Quem Vê Cara Não Vê Encarte em Yeezus (Kanye West, 2013)

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Faz umas semanas que comprei o novo álbum do Kanye West, Yeezus, logo que saiu em formato físico aqui no Brasil. Dada a demora, já havia comprado em formato digital na loja do iTunes – coisas do tempo. Hoje são raros os álbuns de artistas interessantes a mim que chegam ao Brasil num tempo aceitável após o lançamento lá fora. E não estou pedindo lançamento de coisas obscuras não. Lançados mais ou menos no mesmo tempo, este do Kanye demorou meses para chegar aqui e o último dos Pet Shop Boys, Electric, parece ter chego essa semana apenas.

Por que eu comprei este álbum em dois formatos? Não é nem pelo disco em si, vou lhes confessar – é um bom álbum, mas talvez o pior do Kanye. Irrelevante aqui isso, contudo. Eu comprei porque acho este um álbum muito bacana pra se ter em formato físico, por mais paradoxal que isso soe.

Decidi escrever não sobre o disco, mas sobre a capa de Yeezus. Sobre Yeezus no formato CD. Sobre a embalagem, sobre a experiência visual do novo disco do Kanye West. Ao passar no caixa, o atendente me pergunta se esse disco é assim mesmo, sem capa. Respondo que sim. Ele vem com outra pergunta: é promocional então? Não, não é. Custa R$28, tanto quanto um lançamento comum, talvez um pouquinho menos. Ele passa no caixa, eu pago.

Desde então fui a lojas de disco (quer dizer, livrarias com seção de áudio – porque lojas de disco hoje…) com amigos e discuti sobre este objeto com alguns também.  Um amigo perguntou se o Kanye West estava pobre/falido para ter lançado um disco assim. Muito pelo contrário.

Invariavelmente, Yeezus é um álbum que chama muita atenção na estante da loja. Fiquei observando e muitas pessoas pegam o CD, confusas e curiosas com o que se passa: é de quem esse CD, isso é assim mesmo, sem nada? Numa estante com vários CDs com capas, algumas extremamente coloridas e saltando na sua cara por atenção, um CD sem nenhuma capa aparente chama muito mais a atenção indo na direção oposta. Só é possível saber que é um álbum do Kanye West – se você já não sabe previamente – caso olhe para a lateral, onde um adesivo indica nome e artista. Atrás há um adesivo incolor com algumas informações sobre samplers, apenas o mais básico e sem o qual provavelmente sofreriam processo. Indicam o site oficial para a ficha técnica completa.

É muito comum entre as pessoas com quem falei o argumento de que não vale a pena pagar quase R$30 por um CD sem encarte. Mas… É mesmo um álbum sem encarte? Prefiro vê-lo como um álbum com encarte único. Vem à mente também Steal this Album do System of a Down, mas este disco do grupo de Metal parece (visualmente) propositalmente assim incompleto, desfalcado, violado. Já roubado de seu encarte e incitando o roubo de sua fisicalidade por completo. Não é o que acontece com Yeezus, a meu ver. Kanye é bastante cuidadoso com o visual nos seus trabalhos e nunca assumiu uma estética assim desfalcada. Clean sim, incompleta não. Um histórico dos artworks, inclusive, mostra o processo.

Pergunto-me como será este álbum lançado em vinil, pois parece-me a primeira vez em que temos um artwork só possível em CD. Uma capa branca no vinil – ou mesmo transparente – com o mesmo selo vermelho não seria a mesma coisa. Tanto é que o bootleg de Yeezus em vinil (não foi lançado no formato até hoje, oficialmente) tinha como capa o CD mesmo, aumentado. O objeto CD é parte do encarte de Yeezus.

Seu selo vermelho, uma vez violado, permanecerá para sempre violado. Confesso ter ficado hesitante em abrir este selo por saber que qualquer corte nele deixaria este objeto maculado, imperfeito. Não seria possível tirá-lo e coloca-lo outra vez tampouco – a tinta se soltaria, aposto. Será que Kanye pretendia que os fãs comprassem dois, um para uso e outro para manter o objeto intacto? Dificilmente.

Outra coisa que me vem quando penso em Yeezus enquanto objeto é o que vem na contrapartida: hoje em dia não seria qualquer CD (ou vinil) uma versão de luxo obrigatoriamente do formato digital (seja iTunes – mesmo iTunes LP –, streaming ou ilegal)? Hoje quem compra é colecionador, isso já está bastante batido falar. Então ao mesmo tempo em que há essa boa surpresa e ar de frescor com o (não-)artwork de Yeezus, há uma decepção também pela falta desse sentimento de que você está levando pra casa algo mais que a pessoa que só está ouvindo digitalmente não está levando, além da qualidade de som superior. Claro que a indústria não adotará mais (já adotou no passado: alguém lembra do CD Zero ou dos discos sem encarte com capa de papel com preços reduzidos?) uma postura assim de lançar fisicamente álbuns com encarte reduzido ou sem encarte para diminuir o custo ao consumidor, porque quem só baixa música ilegalmente não quer saber de pagar menos: quer é não pagar nada. Mas além disso, será que Kanye está querendo dizer alguma coisa com esse – vejamos pelo outro lado – CD sem encarte, sem nada, pobre? Morte do formato? Redundância do formato? Um ‘foda-se’ a quem compra?

Mormaço / Ao Vivo no Theatro São Pedro (Marcelo Camelo, 2013)

Há quem diga que o Camelo é chato pra caramba. E desafinado. Sim, ele desafina às vezes ao vivo (ou não faz questão de afinar-se) e não tem lá um grande carisma (ou não faz questão de ficar batendo papo). Há também quem diga que um cantor-compositor deve cantar e compor coisas bonitas, e quanto a isso eu particularmente não tenho qualquer porém em relação ao trabalho de Camelo, dentro ou fora da sua ex-banda.

Após ouvir pela Rdio seu novo álbum ao vivo, me veio à memória vários momentos especiais que vivi com 4 do Los Hermanos como trilha sonora, meu álbum predileto deles. Também acompanhei comprando de prontidão ambos álbuns solo do Camelo e gostei muito dos dois. Excetuando então as canções ‘inéditas’ e algumas poucas mais fracas pra mim, o repertório todo fazia e faz parte de paisagens da minha memória, de lugares imaginários majoritariamente acolhedores, aconchegantes. Assim sendo, o título escolhido para seu DVD (Mormaço), particularmente me faz total sentido. As canções de Camelo, ainda mais nessas versões voz-e-violão, me trazem imediatamente à beira da praia. E me trazem o mormaço de um dia quente, eu que talvez seja uma das poucas pessoas que se sente acolhida ao entrar num carro que ficou horas pegando sol.

Falar que este show, o mesmo registrado no CD com mesma capa mas nome diferente (Ao vivo no Theatro São Pedro), é intimista é um bocado de coisas: é óbvio, é redundante e não diz quase nada. Esse é o approach de Camelo à sua música, justamente esse approach que faz com que ele receba esses rótulos previamente citados. Seus dedos movimentam-se no corpo do violão em acordes os mais diversos, nenhum deles óbvio, nenhum deles aprendidos no primeiro mês de aula de violão. Uma erudição, uma chatice.

O papo com a plateia é muito pouco e parece vir forçando contra sua timidez, não estamos na aula de aeróbica da Ivete. Sim, chamem o narigudo de antipático. Pode ser, tanto faz. Ele parece, contudo, feliz quando dá espaço para plateia cantar uma de suas canções solo e seus seguidores o fazem de forma comportada, sentadinha como o lugar e a linguagem pedem. Ele sorri e bate palmas mudas, não captadas pelo microfone.

A câmera está ali pertinho, em vários lugares. Às vezes nem tão pertinho, parcialmente escondida atrás da cortina observa dos bastidores pra ver se está tudo bem. Quando seu parceiro surge para tocar rabeca, mesmo durante o solo desse instrumento é Camelo quem está em quadro. Em ‘Fez-se Mar’, contudo, há uma belíssima cena em que as mãos de Camelo e o arco de Thomas Rohrer fundem-se e lutam violentamente na maior calma do mundo com (não contra, não) seus instrumentos. É um fazer-amor. É uma coisa muito, muito bonita.

O registro faz parecer como se Camelo fosse o último dos homens e canta para uma plateia imaginária, pois ela quase nunca aparece até o final do show. Mas há um calor, sim, o calor do mormaço na filmagem timidamente alaranjada, amarelada. Não é algo triste, por mais que algumas canções sejam, ainda que sempre emocionante. Estamos ali, tão juntos mas cada um em seu lugar, sua voz e seus acordes preenchendo o vazio autorizado a ser preenchido durante a exibição, e às vezes até mais. Há paz, há segurança, há intimidade – mas não é exatamente intimista.

Em ‘Tudo que você quiser’ temos outro momento soberbo favorecido pela iluminação precisa e uma direção que, por saber quando usar seus truques e jamais usar sem critério (ou abusar d’) a linguagem do videoclipe, acaba produzindo algo muito, muito bonito. Uma união de dois músicos que transforma uma canção doce em algo quase macabro graças a uma escolha muito pouco usual de instrumento musical na primeira parte da canção. E quando Camelo canta “hoje eu vim pelo mar / naveguei sem volta / mas passei pra falar / que eu não vi resposta” a sensação de que ele, que canta de olhos fechados na maior parte do tempo, é mesmo esse último homem do mundo imaginando seu espaço, seu parceiro, sua parceira e sua plateia.

Nas últimas canções antes do bis ele até parece mais seguro em sua posição e por um momento podemos ver os contornos de algumas pessoas na plateia conforme ele embarca nessa interação, mas tão logo aparece se desfaz. No terceiro bis (só disponível no DVD, ausente no CD), canta com sua esposa Mallu Magalhães e ali parecemos invasores de um luau privado, uma testemunha de uma paixão muito marota.

E quando as luzes do teatro acendem e as pessoas se levantam da cadeira pois o show de fato acabou, o ambiente parece outro. Foi-se a mágica, foi-se o mormaço, foi-se a intimidade. Vai que esse rapaz não é carismático afinal?

Revolução Cultural Moe Moe ou: agora sim o Danilo endoidou de vez. Cultura Idol para quem precisa? E, claro, um piano no J-pop: Kokyuusuru Piano (Sakiko Matsui, 2012)

 

~Aidoru. Acredito que a maioria de vocês já está familiarizada com o termo “indústria cultural”. Se não, em vez de colar o link da Wikipédia, como uma bronca, vou ser bem claro: nessa nossa sociedade, quase toda arte é mercadoria – quase tudo o é, na verdade, não? Existe um modelo de produto aceito pelas massas, e que facilita a sua reprodução em larga escala. Escola de Frankfurt, tal. A música no século XXI é tão indústria como a indústria de tênis. No Brasil a coisa é óbvia, e no Japão não é diferente. Pois estamos entrando no maravilhoso mundo da complexa indústria cultural japonesa e os seus fascinantes produtos, e eu serei o guia de vocês.

O termo, jogado no começo desse texto sem complemento ou coisa que o valha, se refere a um clássico exemplo de produto dessa usina inumana (me vejo obrigado a levantar aqui a plaquinha da ironia, como já é de praxe). Inicialmente, e aqui estou totalmente citando o artigo da wikipédia americana, a palavra estava ligada com a tradução do título do filme francês Cherchez l’idole, estrelando a idole yé-yé Sylvie Vartan. O conceito não se distanciou tanto da concepção francesa de início, mas foi acrescido de características muito japonesas com o tempo, como a idealização da juventude e da pureza, mesmo com o caráter sexual sempre rondando vez ou outra. A cultura idol nipônica não está apenas ligada à música, mas como na França dos anos 60, no Japão atual (como também era nos anos 80 e 90) música pop e imagem andam de mãos dadas, muitas vezes uma sendo mais importante que a outra – convenhamos, é assim em todo o mundo. Uma idol para fazer sucesso de verdade precisa ser bonita (não no sentido ocidental, onde bonita quer dizer gostosa, mas de uma maneira idealizada e subjetiva) e ter uma personalidade que a destaque da multidão de opções que é esse mercado tão concorrido (não confundir com o tradicional mercado de peixe de Tsukiji, risos). Também tinha que se comprometer em manter uma imagem impecável de pureza, o que ainda está presente na mentalidade e no imaginário japonês, apesar de tudo. O termo que designa os fãs desse tipo particular de entretenimento é “wota”. Sim, eu sou um wota safado (e poser pra caramba, como vocês poderão perceber), mas não usarei esse texto para justificar esses meus desvios de caráter: o tema do blog é a música, não? Não sei se vai dar pra falar só da música dessa vez.

 

O AKB48 é hoje o maior e mais popular grupo idol do Japão, se desdobrando em diversas “filiais” em outras regiões e, mais recentemente, em outros países asiáticos. O número exagerado de garotas costuma assustar os mais puristas, só no grupo principal são mais de 60 membros, e de certa forma faz eco ao Onyanko Club, grupo popular na década de 1980 e que também foi produzido por Yasushi Akimoto, sendo o primeiro a se destacar pela quantidade de membros e a existência de sub-grupos. Como foi comentado, a ação da cultura idol no mainstream não se restringe a música, e o AKB48 assim como os seus grupos irmãos possuem diversos programas na televisão japonesa e as garotas estão sempre participando de muitos outros programas e doramas. Também possuem um teatro em Tóquio, onde fazem shows regulares para a alegria dos seus fãs, não só compostos de otakus virgens e fanáticos. Lançam os seus singles em diversas edições especiais, que vêm batendo alguns recordes de vendas aqui e acolá, as principais faixas viram clipes, toneladas de material promocional de cada garota são vendidas e os wotas gordos ou não ficam felizes por poder morrer afogados num grande mar de moe. Recentemente lançaram o segundo álbum, álbum mesmo, e se não fosse tão difícil resenhar (pelo menos para mim) uma coisinha dessas eu já o teria feito, mas foi esse disco que me motivou a tentar discorrer sobre essa parafilia que gosto tanto de cultivar.

O disco mesmo, pra falar a verdade, é aquela coisa de sempre, mas de alguma forma consegue se destacar musicalmente para ouvidos treinados nessas músicas plásticas. Bem melhor que o primeiro, lançado ano passado e só salvo pelos singles, 1830m me soou um tanto repetitivo depois das audições meio cegas de razão na ocasião do seu lançamento. Mas mesmo assim possui uma progressão bacana entre as faixas, o que não transforma o longo álbum duplo no Thick as a Brick idol, mas caramba, não existe comprometimento nenhum do AKB com qualidade musical, na maioria das vezes ao menos (o que não me impede de vibrar com a energia emanada dessas canções de gueixas modernas; são poucas as coisas que ainda me mantêm vivo e a maior parte delas ainda vão me matar).

 
 

No começo do ano um anúncio me animou demais: Sakiko Matsui iria ganhar um disco solo, instrumental, de versões das músicas do AKB48 e outras coisas no piano. Oras, num grupo tão grande de garotas, geralmente as mais populares acabam ganhando sempre mais espaço, enquanto aquelas que não vão tão bem nas eleições e não conseguem um certo following são deixadas à sombra. A Sakiko, minha favorita (não gosto de manter favoritismo, mas ao menos é UMA DAS) desde a primeira vez que vi cantando, e depois tocando Chopin, não é lá das mais populares, mas sempre me impressionou a sua dedicação ao piano (ela, que possui mais ou menos a minha idade, está se especializando no instrumento no Tokyo College of Music) e ao Team K. Definitivamente, me chamou a atenção de pronto com a sua postura pouco convencional no meio, realmente ela pouco parece uma idol, numa concepção tradicionalmente aceita nesse boom idol que estamos vivendo (e que teve o seu inicio com o sucesso do Morning Musume e o Hello Project a partir do final dos anos 90). Sakippe não é a melhor pianista do mundo (ainda!), mas eu consigo sentir nas suas performances o sentimento forte de um coração apaixonado pelo que está fazendo – a mesma coisa sinto quando a vejo no palco, cantando e dançando, meio desajeitada, com as outras garotas. Toda essa parede de texto pra no final eu fazer uma resenha apaixonada de um álbum de piano!

O CD, de nome Kokyuusuru Piano, começa com uma faixa que vinha sendo utilizada em comerciais de Cup Noodles lá no Japão por esse ano. Comercial de Cup Noodles? Isso. E é uma música linda, sim, apesar de parecer um tema de algum jogo de RPG da SquareEnix. Kokoro no Fumen se torna uma boa introdução ao álbum, calma e elegante e bastante acessível. A seguir temos a primeira versão de uma música já consagrada do AKB48, e que maravilha de arranjo. A intro de Aitakatta se transforma em algo extremamente épica e grandiloquente, onde Sakiko esbanja toda a sua técnica classicista. Não lembra nada a canção original, até que vai se transformando nela por volta da marca dos 51 segundos. Não deixa de surpreender a qualidade do arranjo e a técnica dessa garota, que com firmeza acaricia o seu piano. Ah, mas eu estou sendo sentimental demais…

A segunda versão é de um single mais recente, Flying Get. Outra intro maravilhosa, mostrando também a qualidade dos outros músicos que acompanharam Sakiko nesse projeto e a criatividade dos produtores. Um belo solo de guitarra espanhola! A música inteira possui esse clima latino, e todo o instrumental é estupendo, não apagando a genialidade do piano, que se mescla muito bem com os outros instrumentos. Sakiko demonstra ser versátil pra caramba, quando começa a acelerar as suas teclas dando uma de Hiromi numa briga de galo (ou tourada?) jazzística com o violão, para depois voltar ao standard e finalizar. Lembro que na primeira vez que ouvi fiquei sem fôlego. A faixa seguinte tá pra relaxar, e Utau Ketsueki ~Utsui Ken no Kaatsu Training no Theme~ faz isso muito bem. Calminha e clássica na forma, mas sem deixar de ser pop. As versões retornam com Everyday, Kachuusha, bem parecida com a original – ensolarada, alegre, viva. Tamashii no Idou ~Gugutasu-min no Theme~ é o único momento de estranheza do álbum, e vocês sabem que se algo parece esquizofrênico esse algo será odiado pelo grande público, mas será amado por mim. E eu, particularmente, adorei desde a primeira vez que vi o preview do PV dela, uma canção quase que tribal com a sua percussão, com vozes que me remetem aos corais tradicionais búlgaros de mulheres (Le Mystère des Voix Bulgares, se não conhecem, por favor…) ou aquela abertura do seriado Xena, lembram? É, não sei se foi o melhor exemplo. A melodia do piano de Sakiko se mescla maravilhosamente, mais uma vez, na linda confusão de tambores, sinos, cítaras, gritos, ruídos, enfim: arte. Arte, outra palavra muito subjetiva.

Beginner nos trás de volta desse mundo de sonho. Outro arranjo bem parecido com o original, uma das músicas mais populares do grupo. Ser standard não tira a beleza da coisa. Ponytail to Shushu não é nada stardard, mas também não destoa da versão original, apesar de culminar numa explosão de jazz e ter os seus momentos de pura empolgação juvenil. Mais uma vez digo, eu posso sentir Sakiko se divertindo enquanto toca essa faixa, com um grande sorriso no rosto. A versão de Heavy Rotation joga o piano para o fundo da sala, como acompanhante de todo um grupo de… reggae? Outro arranjo criativo. Sakura no Ki ni Narou é a última versão do álbum, e como não poderia deixar de ser, é linda demais. Nos momentos certos, com acompanhamento de cordas inspiradas, Sakippe nos presenteia com uma bela peça, emocionante. Não é puxação de saco não. Pro final fica a sua interpretação da sonata para piano N° 18 K. 576 de Mozart, clássica, simples, pura e bela. Ah, como é bonita em sua simplicidade. Não vemos aqui demonstração de profunda técnica e pedantismo, já que realmente é uma composição simples e já um tanto desgastada. Ouvidos treinados em Mozart realmente tenderiam em criticar a simplicidade honesta dessa versão, mas eu achei tão maravilhoso que não vejo a hora de ouvir um álbum da Sakiko só de composições clássicas. Para ela, o mundo idol é só o começo, há muito espaço lá fora para Sakiko crescer, crescer e eu continuarei torcendo pela felicidade e sucesso da minha oshimen.

Deixar o preconceito de lado deve se tornar o mantra do verdadeiro “ouvinte de mente aberta”. Se a música pop japonesa não lhe agrada, espero que tenha ao menos um motivo. “Não ouvi e não gostei” não é bem um motivo, é? Mesma coisa para aqueles que só conseguem ouvir as plasticidades livres de crítica do pop e ainda sentem medo de pianos e experimentações. Agora, esse álbum se distancia um pouco do j-pop, o suficiente para alguém, cego pelo preconceito, reconhecer algum valor na coisa toda. Se mesmo assim ele desprezar isso, paciência, só pode ser surdo!

White Light (George Michael, 2012)

 
 
No single que saiu essa semana na nossa iTunes Store, George Michael jura de pés juntos que está vivo – a questão é o que se entende por vivo. Nesses basicamente trinta anos de carreira, George lançou apenas seis LPs de inéditas, contando com os dois do Wham!. Um álbum a cada cinco anos, assim sendo – uma média um tanto baixa para um artista pop. Seu último álbum saiu em 2004, o bom Patience: isso foi há oito anos atrás. Desde então o público foi contemplado com apenas cinco singles, sendo um deles um dueto, um deles um cover e outro deles uma música de Natal. Ao que nos serve mais diretamente, então, dois singles em oito anos, quase como se a criatividade de George tivesse se reduzido de um álbum para uma só canção no mesmo período de tempo, algo bastante preocupante que denota talvez um comodismo excessivo por parte dele – afirmação esta que foi, no passado, feita inclusive por Elton John, ao dizer que é uma pena que um talento tão grande quanto o de George seja tão pouco profícuo.
 
  O caso se agrava um pouco mais se formos nos atentar a esses dois singles que ‘sobram’: An Easier Affair, de 2006 e o White Light agora de 2012 – eles são basicamente, em conteúdo, a mesma canção. Ambas falam, usando palavras diferentes, que ele está vivo, que ele está curtindo a vida agora e sentindo-se bem melhor que anteriormente graças à música e às coisas boas da vida. Que o importante é ser feliz e que o divino salva. Ambas tentativas de voltar às pistas, apostando assim nas batidas eletrônicas. Assim sendo, parecem-me mesmo esses singles serem meros sinais de vida enquanto George tenta entrar na luta, junto com Cher, Phil Collins e muitos outros, de quem tem mais turnês de despedida.
 
  White Light é também o resultado de uma fase atual de George de estar querendo explorar diferentes nuances de sua voz, mas pelos meios errados a meu ver – True Faith, cover do New Order lançado como single ano em 2011, é um experimento um pouco desconfortável com Vocoders (aparelhos sintetizadores de voz que podem ser confundidos com os autotunes utilizados hoje à exaustão por cantores vendidos às dúzias). Uma voz belíssima como a do George não me parece nem um pouco uma candidata a esse tipo de recurso: admiro a intenção de explorar, mas o resultado é infeliz. White Light não é tão eletrônica na voz, em compensação é totalmente eletrônica na música – ela é como uma união entre a True Faith e o também cover You and I que George gravou como presente para o casamento do príncipe Harry, jamais lançada como single e sim distribuída gratuitamente pelo site oficial. É uma união desse experimento barato com a voz fazendo o que outros cantores estão fazendo em excesso atualmente e uma gravação com um clima gospel (You and I, no caso), com camadas de backing vocals – eletrônicas, dessa vez. É muito formol pra pouca vida.
 
  Não estou aqui fazendo juízo de valor e nem isso é um guia de consumo, mas passo a me preocupar se há qualquer coisa no futuro do George além de uma canção bacaninha a cada cinco anos. E com as coisas do jeito que estão, vai ficando cada vez mais difícil ouvir sem preconceito.

"Your Arsenal" (Morrissey, 1992)

Morrissey começa o disco propondo uma união. Não que isso seja impensável, pois quem conseguiu ver além da sua faceta celibatária conseguiu possivelmente perceber ser este um celibato involuntário. Tal faceta, contudo, parece ser seguida a risca por grande parte de seus fãs, já que quando se trata de Morrissey há um dado único em seu fanatismo: seus fãs são como ele, há esta religiosidade onde Moz é de fato o pastor e quase tudo os faltará. You’re gonna need someone on your side é a canção, começando com um baixo galopante muito longe do galope frágil de “you can pin and mount me like a butterfly”. Morrissey nunca soou, até aqui, tão… masculino. E este ‘someone’ da canção, quem seria? “And here I am”, ele responde, quer aceitemos ou não sua companhia. Mas para quê seria essa companhia, para quê este convite de união? Segue-se a proposta em Glamorous Glue, que curiosamente foi relançada como single em 2011, pontuando que esta seja uma visão que permanece com ele – e com uma dose de provocação também, como é comum. A guitarra como uma serra elétrica anuncia a faixa em cujo verso final encontramos a ligação com a faixa anterior e com as que se seguem: a procura pela Inglaterra, ou o que resta dela. Em Glamorous Glue Morrissey soa dissonante ao declamar (ou melhor, surrurrar), logo antes deste referido verso a frase “everything on Earth is there to share” – logo em seguida, na parte da canção previamente mencionada, reclama da americanização da Inglaterra e declara que, depois da Rainha, agora Londres por inteiro está morta. I know I’ll go empty hand from my land”, termina. E la nave va.

Desembocamos na mais soturna – e Morrisseyiana, no sentido da comparação até então – We’ll Let You Know. Levada no violão, seu espírito não é dócil mas sim plenamente recalcado – o ‘we’ – ‘nós’ somos possivelmente as pessoas mais deprimentes que vocês já conheceram, mas ‘somos’ também os últimos realmente ingleses que vocês conhecerão. O discurso é cada vez mais claro: a Inglaterra descaracterizada pelo multiculturalismo e uma postura do Morrissey cada vez mais contra esse fenômeno global. Algo estranho, contudo, é que o próprio Morrissey é imigrante, mas um imigrante mais dócil talvez, um imigrante que foi fagocitado pelas tradições inglesas – ou talvez o contrário. Morrissey, de linhagem irlandesa (lembremos: Irish Blood, English Heart), parece esquecer – ou preferir ignorar – isso em tais discursos. Uma ótima leitura pra quem estiver interessado nesse discurso dúbio de inglesidade nos Smiths está no texto ‘Irish blood, english heart: ambivalence, unease and The Smiths’ de Sean Campbell presente no Why Pamper Life’s Complexities: Essays on The Smiths, livro recomendadíssimo aos fãs.

Está em The National Front Disco o momento em que isso tudo pega fogo – e está aí qualquer Wikipedia da vida ou fã do Morrissey para lhes servir em informações – e o momento em que a “história da música popular” decidiu crucificar Morrissey como um neonazista sem direito a ressureição. Ao ouvirmos com atenção a canção, é de fato de coçar a cabeça procurando alguma razão pela qual ele mexeria nesse vespeiro. Há alguns anos atrás Morrissey foi novamente acusado de racismo pela revista NME e rebateu as acusações, processou a revista e se sentiu injustiçado dizendo que tiraram suas frases de contexto. Normal. Entretanto, Morrissey pede esse tipo de atenção e em diversos momentos de sua carreira decidiu colocar-se em terrenos perigosos – o que é, convenhamos, EXCELENTE. Como ele mesmo já declarou, um dos maiores problemas da música pop atual é que ninguém tem absolutamente nada a dizer, posição ou causa alguma a defender. Há quem defenda que músicos têm que calar a boca e tocar – e alguns têm mesmo, não é verdade, Sr. Dave Mustaine? Fica a questão, entretanto: é preferível termos um músico advogando valores questionáveis ou figuras adestradas a soltarem uma musiquinha quando colocamos uma moedinha? Há também a saída de advogar por uma causa mais segura como o senhor Bono Vox e, por que não, a senhorita Lady Gaga.

Mas eis que após National Front Disco, ele se cala sobre o assunto, quebrando a linha e deixando que o assunto se dissolva apenas para que a Inglaterra seja citada muito brevemente na debochada We Hate It When Our Friends Become Successful (mas não é verdade?) e em You’re the one for me, fatty, canção que foi inclusive cantada aqui nos shows que Morrissey fez no País em Março de 2012. Louvável canção por celebrar esse corpo rotundo. E por falar em corpo, se em Viva Hate a carnalidade estava na letra, aqui está na imagem. E não uma mera carnalidade, mas um homoerotismo que retorna aos primórdios dos Smiths (lembremos da capa do primeiro LP e do primeiro single, Hand in Glove). Observemos a capa dos singles You’re the one for me, fatty e de Tomorrow, além da capa de Live in Dallas lançado no mesmo ano e, ora, do próprio “Your Arsenal”: sempre o corpo de Morrissey em posições sedutoras, seminuas. Notemos também que isso jamais havia acontecido antes, nem na sua carreira solo e muito menos com os Smiths. Curiosidade mórbida veio anos depois com o lançamento do Greatest Hits de 2008 e o trocadilho infame com o título desse disco escrito em cima do peludo bumbum do Morrissey: “Your arse an’all”, possivelmente foto esta tirada na época – uma proposta ambiciosa de divulgação, convenhamos. Outro fato notável é que pela primeira vez em toda a carreira temos um LP de Morrissey em que as letras não estão impressas no encarte. Para quem sempre deu muita importância para a letra – ora, ele é um letrista, não um músico – é bastante significativa essa ausência, é uma atenção ainda maior voltada para a imagem, para o instinto ao invés do intelecto. Ao invés das letras, então, o que temos no encarte é o corpo de Morrissey. Outro convite para aprofundar-se nesse assunto é o excelente livro Saint Morrissey. Que tal?

O tríptico final de Seasick, Yet Still Docked, I Know It’s Gonna Happen Someday (esta que teria futuramente um cover de ninguém menos que David Bowie) e Tomorrow anuncia o clima do álbum futuro. Triste foi a dissolução dessa parceria entre Morrissey e o produtor Mick Ronson (ele mesmo um ex-membro da banda dos tempos mais bonitos de Bowie), que faleceu logo após esse trabalho – não o último produtor do Morrissey a falecer logo após um lançamento do cantor, vale lembrar num tom macabro. Ronson conseguiu extrair de Morrissey, nesse álbum, uma sonoridade que acabou sendo a base para a sonoridade atual do Morrissey – algo que talvez não tivesse acontecido caso Ronson fosse um fã dos Smiths, já que o produtor jamais tinha ouvido falar na banda ou no Moz antes de ser contatado para o convite ao cargo. A cabeça no mundo da lua aqui, claramente, levou o som às alturas.